
Em certo trecho de “Dão-lalalão”, o protagonista sertanejo Soropita descreve as mãos da sua companheira Doralda, como “mel”: “mel nas mãos, nem era possível se ter um mimo de dedos com tanto meigo”. Apesar de ser um trecho aparentemente aleatório sobre o casal, ele se destaca pois é um dos primeiros elogios que ele usa para descrever sua esposa sendo que, no resto da narrativa, ele demonstra comportamentos que são, para dizer o mínimo, de moral complicada, ambígua e duvidosa.
“Noites do Sertão”, de João Guimarães Rosa, livro no qual a novela “Dão-lalalão” se encontra, junto com “Buriti”, se desenrola inteiro dentro de encontros ou situações noturnas. Originalmente, as duas histórias foram publicadas em 1956, no volume que compunha o que ficou conhecido como “Corpo de Baile” e desmembrados para se tornarem “Manuelzão e Miguilim”, “Urubuquaquá, no Pinhém” e, por fim, “Noites do Sertão”. Enquanto os dois primeiros são focados na jornada dos personagens (ainda de que formas distintas, como apontados nos seus respectivos textos), o último pode ser considerado um estudo sobre desejo. Assim, o autor usa da ambientação em que os personagens existem para explorar o tema – misturando elementos e situações.
A primeira novela acompanha Soropita, que narra sua viagem pelo sertão ao mesmo tempo que usa da sua memória para oferecer contexto no seu relacionamento com Doralda, que é uma ex-prostituta. A história em si tenta abordar o casamento deles por dois momentos distintos, o primeiro focado bastante no sentimento de desejo que Soropita tem pela sua mulher e como isso aconteceu; e o segundo explorando seu sentimento forte de ciúmes. Ambos os cenários são enraizados em uma coisa fundamental para entender a base para esse relacionamento: o sistema patriarcal brasileiro. E como o autor entende muito bem isso, a novela ganha um aspecto que é, essencialmente, crítico.

A relação entre os homens da vida de Doralda, incluindo seu marido, e a violência não é uma mera coincidência.
Já na segunda trama, o cenário é a fazenda que leva o nome do título, para onde o veterinário Miguel volta depois de um tempo. O desejo aqui também toma grande parte da narrativa, mas dessa vez é a própria ambientação que serve como o estopim. Não é apenas Miguel o afetado, mas todos os personagens. A violência apresentada na primeira história também faz parte da narrativa, mas aqui as situações inusitadas (e seus desenrolamentos) tomam a maior proporção da trama e fazem com que os sentimentos dos personagens sejam menos “cru” e “brutais” do que aqueles apresentados na história de Soropita.
Ao chegar no final do livro, o texto de Maria Glória Bordini (professora) aponta esses personagens masculinos como “chefes voluntaristas com corações patriarcais”, uma descrição interessante e muito pertinente. Os personagens de “Noites do Sertão” são humanos e, portanto, fruto do contexto que cresceram e se tornaram pessoas. As situações inusitadas, o desejo e a forma como eles lidam com isso são um reflexo desses mesmos fatores, algo que a narrativa aponta constantemente, ainda que de forma sútil.