Artigo – Literatura radicalmente infanto-juvenil

19 de setembro de 2023

Aventura escrita por João Carlos Marinho quando criança, que permaneceu inédita por 75 anos, reacende a discussão sobre o protagonismo infantil na literatura

Texto: Beto Furquim

João Carlos Marinho na época em que criou suas primeiras histórias.

Quatro anos após sua morte, o escritor João Carlos Marinho, autor de O gênio do crime, continua a surpreender. As páginas amareladas de um caderno espiral manuscrito em 1948, quando João tinha apenas 13 anos, foram transpostas para um livro recém-publicado pela Global Editora (144 páginas, ilustrações de Maurício Negro), mantendo o título original, As joias desaparecidas.

E eis que se revela ao público a primeira novela de mistério, ação e humor de João Carlos Marinho, um dos autores que, a exemplo de Ruth Rocha, Ana Maria Machado e Lygia Bojunga Nunes, trouxeram novos ventos para a literatura infanto-juvenil brasileira nas décadas de 1960 e 1970.

Na história, um detetive-mirim, também chamado João Carlos, depara-se com um misterioso crime cometido muitos anos antes em Shangai, na China, mas ainda não inteiramente resolvido.

O detetive tem muito mais em comum com o autor do livro que apenas o nome: a idade, o nome dos pais e até mesmo o endereço na cidade paulista de Santos coincidem exatamente com os do também pequeno escritor.

As autorreferências são permeadas de uma sutil e divertida ironia que transcende a narrativa: está presente em todo o processo de “publicação caseira”, que passa a nítida impressão de que o garoto João está adorando brincar de escrever um livro. O caderno, reproduzido em fac-símile na edição que acaba de ser lançada, emula um livro nos mínimos detalhes: tem capa, índice, dedicatória, biografia, foto e até relação de outros títulos do autor (HQs criadas por ele quando era ainda mais novo), prefácio, páginas numeradas, capítulos, epílogo e inclusive nome de editora. Sinais de um leitor voraz e muito observador de livros de verdade.

Um dos mais preciosos elementos do manuscrito, no entanto, é possível apenas em edições artesanais como aquela (e que poderiam ser replicadas em livros eletrônicos, fica a dica): como em exposições de arte e outros eventos presenciais, há um espaço para o leitor deixar um registro de sua leitura. É nesse espaço que Arthur Neves, amigo da família que traz a importante credencial de editor profissional, responsável pela organização das obras completas de Monteiro Lobato e pela "descoberta" de autores da época como Maria José Dupré, deixa expressa sua aposta ousada, ainda que informal: "João Carlos Marinho Silva será um grande escritor, ninguém tenha dúvida".

Tantos anos depois, três gerações de leitores de O gênio do crime e das Aventuras da Turma do Gordo podem se admirar com a precisão dessas palavras.

Capa de As joias desaparecidas

Criança também pode escrever livro?

Há vários ângulos por onde olhar esse lançamento da editora Global. O ângulo histórico é inevitável. Lá se vão 75 anos desde 1948. Coincidentemente, foi o ano em que morreu Monteiro Lobato, grande ídolo do garoto João Carlos.

O ângulo biográfico também ressalta. As joias desaparecidas já mostra a pavimentação de um caminho literário 21 anos antes da publicação de O gênio do crime, livro de estreia de João.

Apesar da importância desses pontos de vista retrospectivos, talvez o olhar mais fascinante seja o que abre perspectivas para encarar com mais atenção futuras criações semelhantes.

A qualidade literária da aventura feita por um menino de 13 anos mostra que, apesar de muito importante, a larga experiência de vida não é imprescindível para escrever com desenvoltura e encanto. E que a deliciosa aventura de protagonizar o próprio destino, nas asas da invenção artística, pode começar mais cedo e estar bem mais próxima do que muitos imaginam.

Por tudo isso, a publicação de As joias desaparecidas, aventura escrita e protagonizada por uma criança, é uma boa notícia não só para os fãs de João Carlos Marinho, mas para leitores em geral, e, especialmente, para os aprendizes de escritores.

Beto e Cecília Furquim, filhos de João Carlos Marinho

Texto: Beto Furquim

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