Artigo – A recepção internacional da obra de Gilberto Freyre, por Cibele Barbosa

14 de julho de 2023

Gilberto Freyre (1900-1987) é um autor com uma longa trajetória intelectual e pública. Com uma vasta produção de livros, dezenas destes, além artigos científicos e de uma ampla contribuição para veículos de imprensa, em especial a escrita, Freyre sempre esteve no centro de debates e polêmicas. Autor multifacetado, sua obra é tão diversificada que poderíamos dividir sua atuação e trabalhos em diferentes fases, principalmente em razão dos temas que pautou, defendeu e debateu. Sua trajetória como intelectual público também merece análises que possam dar conta da complexidade e mutações em sua trajetória. Polêmico, plural e controverso, Freyre é um autor incontornável no pensamento social brasileiro.

 

Gilberto Freyre (ao centro), Juan Liscano (à esquerda, Georges Gurvitch (à direita) e Mario Pinto de Andrade (abaixo). Castelo de Cerisy-la-Salle, 1956.
Acervo: Fundação Gilberto Freyre

 

Um ponto, porém, que não pode escapar a quem estuda sua obra, é a sua atuação e influência de seus escritos em cenários internacionais. Acostumados que somos a pensar a influência de autores(as) estrangeiros(as) no cenário brasileiro, muitas vezes nos esquecemos da importância ou da presença de intelectuais brasileiros(as) em debates referentes a questões sociais de outros países. Desse modo, estudar as redes internacionais de circulação de ideias e de pessoas, as diferentes apropriações e ressignificações de autoras(es) brasileiros em paisagens sociais e intelectuais distintas não deixa de ser um exercício de observar o fluxo de pensadores(as) do Sul e seu papel no Norte global, entendendo que não somos meros reprodutores de teorias e teses das áreas “centrais” do Globo.

Assim, quando construímos uma pesquisa de história (história da historiografia, história do pensamento social etc.), o mais importante consiste em observar os modos de recepção e apropriação das ideias desses autores bem como os efeitos de suas ideias em diferentes cenários políticos, sociais, intelectuais e culturais.

No caso de Gilberto Freyre, é interessante observar de que maneira suas principais reflexões acerca das relações raciais no Brasil interagiram com preocupações e transformações de outros países. Quando sua obra germinal Casa-grande & senzala foi publicada em 1933, causou bastante alvoroço entre os seus pares. Naquele cenário do início dos anos 1930, Freyre apresentava uma prosa moderna e ousada, bastante sexualizada. Embora ainda adotando um léxico próprio à episteme racializada do período, ele buscou uma interpretação que divergia da maioria dos intérpretes do Brasil: o Brasil não estaria fadado ao fracasso em razão da mestiçagem: era o consórcio das três raças, com destaque para a influência do europeu não arianiano (como se dizia à época) e sim o “branco” português, além das populações de ascendência africana. Vale destacar, porém, que, para Freyre, essa contribuição negra seria mais proeminente nos aspectos culturais e na vida privada. De toda forma, em tempos em que autores como Nina Rodrigues e Oliveira Vianna desprezavam a mestiçagem e inferiorizavam populações negras e indígenas, Freyre apresentava narrativa contrária às teses de degenerescência racial afirmando que os problemas no Brasil não eram ligados às deficiências ou inferioridades de uma raça, mas eram consequências de instituições sociais como a escravidão.

Para entender o sucesso e a circulação internacional de sua obra, tomando como exemplo Casa-grande & Senzala é preciso levar em conta não apenas a temática e o conteúdo do livro, que certamente interessavam às questões que interpelavam leitoras e leitores de seu tempo, mas sobretudo é necessário observar a costura de redes de sociabilidade intelectual, prestígio político, rede de influências além das questões emergentes no campo de acolhida.

Nesse sentido Freyre, que já contabilizava reedições de Casa-grande & senzala e lançava Sobrados e Mucambos (1936), Nordeste (1937) e outras obras. Ganhou notoriedade internacional principalmente nos anos 1940, em meio à Segunda Guerra Mundial, quando foi convidado para ministrar cursos e conferências nos Estados Unidos. Sua formação em universidades norte-americanas e a rede de contatos e amizades que estabelecera desde os anos 1920 auxiliaram-no na articulação institucional. Ao mesmo tempo, Freyre já era considerado uma referência intelectual para brasilianistas norte-americanos. Amigo de Frank Tannenbaum, Richard Pattee e outros estudiosos acerca das relações raciais e dos estudos de história comparada da escravidão, Freyre garantiu um espaço de inserção de suas ideias nos Estados Unidos.

 

 

Outros fatores como a herança intelectual de Franz Boas, antropólogo cujas reflexões no tocante à crítica aos determinismos raciais e ao racismo científico ganhavam bastante notoriedade sobretudo naqueles idos de meados do século XX, quando os efeitos nefastos do nazifascismo em seus postulados de superioridade racial passaram a ser fortemente combatidos nos meios sociais e políticos progressistas. Nesse sentido, teses culturalistas que se opunham aos determinismos biológicos e raciais, ou seja, que se propunham separar raça (conceito biológico) e cultura, ganhavam os holofotes do meio acadêmico antifascista e antirracista. Freyre era um destes que conquistava notoriedade por defender as vantagens de uma população mestiça, quando em boa parte dos EUA eram mantidas rígidas leis de segregação racial; e por suas reflexões culturalistas inspiradas em Boas.

Freyre também capitalizou e reforçou uma ideia bastante recorrente no Brasil, ideia inclusive anterior à escrita de Casa-grande e Senzala, no caso, a suposição de que o Brasil era um país que mantinha um trato harmônico e igualdade de oportunidades entre as raças – Ideia essa alimentada por observadores estrangeiros no final do século XIX e propagandeada em meios políticos nas primeiras décadas do XX – tão conhecido mito da democracia racial. O termo aparece nos anos 1940 e tem em Freyre um dos seus mais conhecidos propagandistas. O fato de o sociólogo pernambucano estar sob holofotes institucionais e internacionais o transformou em uma espécie de embaixador intelectual desta ideia, e de fato, ele insistiu nessa tese.

Enquanto, no Brasil, alguns intelectuais já apontavam as contradições e os problemas que uma ideia de democracia racial poderia ocasionar na tomada de consciência da luta antirracista, obliterando o racismo que atingia a população negra, essa mesma ideia ganhava outros contornos e apropriações quando apresentada em contextos internacionais.

Estávamos em 1940, em meio a um cenário sangrento de uma guerra fortemente fomentada por discursos de pureza étnica. Ora, quando um intelectual com o prestígio de Freyre, advogava que o Brasil seria uma esperança para as nações, graças à sua população miscigenada e a uma ausência, ao menos normativa, de barreiras de ordem étnica e racial, tais ideias atendiam as expectativas de intelectuais e políticos do Norte global na sua crítica ao racismo.

Após a Segunda Guerra, esse discurso otimista de que o Brasil seria o exemplo para outras nações ganha ainda mais força. Paralelamente Freyre, graças à sua eleição como deputado, compôs a delegação brasileira na criação da ONU e adquiriu visibilidade entre os integrantes da recém-criada Unesco. Ao mesmo tempo, na França, seu livro mais importante ganhava uma tradução prestigiosa e resenhas generosas de intelectuais como Roland Barthes, Fernand Braudel, Roger Bastide e outros. Era o ano de 1952. A ideia de que o Brasil era um exemplo do contato inter-racial já era tão debatida e criticada no Brasil que a Unesco resolveu patrocinar um estudo amplo no nosso país para confirmar ou refutar a tese gilbertiana.

A recepção de Freyre na França é interessante de ser observada porque o interesse e a acolhida à sua obra ocorreram não apenas em razão das ideias acerca da questão racial, mas por outros atributos de sua obra. No caso de historiadores de destaque da cena francesa como Fernand Braudel e Lucien Febvre, Freyre adotava uma escrita histórica bastante interdisciplinar e antenada com a proposta metodológica da chamada “escola” dos Annales, por eles capitaneada. A revista dos Annales era bastante conhecida entre historiadoras(es) em razão de suas inovações epistemológicas, fugindo ao tradicionalismo da história factual e pregando uma maior abertura disciplinar com ênfase na história social e cultural. Tais inovações também eram produzidas por Freyre desde o final dos anos 1920.

Outros fatores próprios ao momento vivenciado pelos franceses se somam à receptividade positiva à obra de Freyre. Uma delas era a narrativa freyriana centrada em estudar a “saga” do colonizador português e sua suposta propensão à mestiçagem. Essa ideia, hoje tão refutada e controversa, apresentava, naquele tempo, dois aspectos que interessavam àqueles que de alguma maneira defendiam a manutenção do colonialismo. No caso, para alguns intelectuais da cena francesa, Freyre fornecia o exemplo de sua sociedade outrora colonial (o Brasil) que, na sua interpretação, conseguiu desvencilhar-se das barreiras raciais. Sob essa lógica, países como Portugal e França poderiam se valer desse exemplo para afirmarem a possibilidade de serem “antirracistas” sem deixarem o aparato colonial que mantinham em territórios dos continentes asiático e africano. Daí a se explica expressão que usei em meu livro: “colonialismo esclarecido”. Afinal, eram intelectuais humanistas, “antifascistas” e antiracialistas, que, ao mesmo tempo, não eram anticoloniais. É nesse sentido que o estudo dos debates sobre o colonialismo francês e português também é uma chave de compreensão para entender a recepção de Freyre nestes países, embora na França a adesão tenha sido de forma mais sutil e restrita à resenha de alguns autores e, no caso português, as ideias lusotropicalistas de Freyre tenham se tornado, de fato, um discurso adotado pelo governo colonialista de Oliveira Salazar, que se valia dessas reflexões para promover a ideia de uma  suposta propensão do português a mestiçagem.

De modo geral, a grande notoriedade dos escritos de Freyre na cena internacional se deu entre os anos 1940 e 1950. Eram tempos de muitas transformações tanto nos aspectos sociais quanto na produção de conhecimento; período de transição em que ideias e projetos de futuro circulavam provenientes dos mais diferentes grupos. A ideia de Brasil erigida por Freyre, embora com suas particularidades e sujeita a refutações, atendeu certos anseios e se encaixou com discussões próprias daquele período, principalmente no cenário europeu e norte-americano.

Vejamos: a Europa acabara de vivenciar genocídios étnicos e as ideias de supremacia branca ainda estavam na ordem do dia; os EUA ainda mantinham, em alguns estados, leis segregacionistas e, na África do Sul, o regime de Apartheid tinha sido recentemente implantado (1949). Tal cenário geopolítico era o terreno ideal para a acolhida de um Brasil idílico, defendido por Freyre, que serviria supostamente de exemplo para um futuro mais conciliador entre as nações, ao menos no trato das diferenças raciais. Da mesma forma, as qualidades estéticas e opções de fontes documentais adotadas pelo sociólogo brasileiro em sua obra conquistavam leitores europeus e norte-americanos que destacam, por sua vez, a originalidade e qualidade da escrita freyriana.

Cibele Barbosa é doutora em História Moderna e Contemporânea pelo Centre dÉtudes du Brésil et de lAtlantique Sud (Centro de Estudos do Brasil e do Atlântico Sul) da Universidade Paris IV-Sorbonne, França (2011). É pesquisadora titular da Fundação Joaquim Nabuco/MEC e professora do Profsocio/Fundaj. Cibele tem experiência na área de História Contemporânea, com ênfase em história afro-brasileira e africana, história intelectual e história visual em espaços atlânticos.

Conheça o livro “Escrita Histórica e Geopolítica da Raça – a recepção de Gilberto Freyre na França”, de Cibele Barbosa. Trabalho vencedor do 1° Concurso Internacional de Ensaios – Prêmio Gilberto Freyre 2020-2021 e editado pela Global Editora.

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