29 de maio de 2023
Superstições, misticismo, messianismo, cangaço, esses são alguns temas que iremos encontrar na obra de
José Lins do Rego,
Pedra Bonita. São temas sociais que se desenrolam em determinadas regiões do país e que serviram de pano de fundo para muitos autores da literatura brasileira. Sobretudo para aqueles da geração de 30 em que a literatura brasileira é marcada por retratar questões sociais. Mas fazer uma análise a partir desse recorte é reduzir muito a obra desse grande autor.
Como literatura não é exatamente minha especialidade, procurarei fazer uma leitura sob um aspecto mais psicanalítico dessa obra. De início devo lembrar que, embora a psicanálise possa estar circunscrita ao âmbito da psicologia e da psiquiatria, Freud – o pai da psicanálise – se utilizou dela para pensar diversos aspectos do psiquismo humano. Assim, autores como Jansen, Dostoievski, Goethe, Shakespeare tiveram suas obras analisadas por ele a partir da psicanálise.
Pois bem, se uma análise de Pedra Bonita não deve ficar reduzida aos seus aspectos sociais, por onde devemos começar? Creio que Lins do Rego quis trazer em seu romance a dimensão do homem com o tempo, o lugar e sua própria história. Isso fica muito evidente já na história do personagem principal, embora tenhamos a oportunidade de observá-lo em outros personagens. Mas foquemos em Antônio Bento, o herói da narrativa.
Abandonado, ainda muito pequeno, por uma família de retirantes, Bento é entregue aos cuidados de padre Amâncio na vila do Açu, um vilarejo miserável no meio do sertão. Por ser gente da Pedra Bonita, Bentinho sempre foi hostilizado na vila do Açu. Esse comportamento hostil ficava aparente no dizer de alguns moradores. Para muitos deles o padre estava acolhendo uma serpente dentro da própria igreja. No entanto, é seu personagem que cria o elo entre os acontecimentos da vida no Açu e os fatos ocorridos na Pedra. As pessoas dessas duas cidades, Açu e Pedra Bonita, são rivais, vivem a se acusar pelas mazelas que lhes afligem. É por isso que, apesar de Bento já viver em Açu há tempos, o povo da vila o trata como um estranho, com um misto de temor e desprezo, porque a cidade natal do herói, Pedra Bonita, fora sede de um acontecimento nefasto, envolvendo a figura de um santo e o sacrifício de muitos inocentes, a respeito do qual todos preferiam calar.
Desse modo, Bento se vê assim estigmatizado por um passado do qual não pôde participar e cuja história ele próprio desconhece. E desconhece justamente por que há não-ditos em torno dessa história, silenciamentos. Aqueles que têm alguma familiaridade com a psicanálise sabem da importância que ela dá à palavra. Freud dizia que há três profissões impossíveis: psicanalisar, governar e educar. Elas são impossíveis não no sentido de irrealizáveis, mas no sentido de que com elas sempre resta um dividendo, uma sobra. E por que isso? Porque nós não temos controle sobre seus efeitos: nem sobre os outros, nem sobre nós mesmos. Mas se, por exemplo, um adulto não dirige sua palavra a uma criança, a experiência da vida não se ordena para ela. Como somos seres de linguagem, é por meio da palavra que podemos simbolizar os acontecimentos da vida e da nossa própria história.
É bem verdade que não é possível dizer/contar tudo. Pensem naquela discussão que você ensaiou em ter com seu chefe, seu esposo ou esposa, sua namorada. Você planejou dizer tudo que estava entalado ou lhe incomodava. Passado o momento da discussão, da conversa, você começa a se dar conta de um tanto de coisas que você queria ou poderia ter dito e não disse, não é verdade? Mas não dizer tudo é diferente de não dizer nada, de silenciar. No caso de Bento, o silêncio sobre sua história – sobre os acontecimentos passados de sua cidade – só contribuía para reforçar o estigma que sofria.
A coisa começa a mudar justamente quando ele é incentivado pelo padre Amâncio, seu padrinho, a voltar a sua cidade de origem, Pedra Bonita, e lá permanecer por três meses. Sua ida acontece na segunda parte da obra. Esse retorno às origens, dá a Bento a oportunidade de conhecer melhor a sua própria história. E conhecer a própria história é, de alguma forma, implicar-se e responsabilizar-se por ela. Muitos podem pensar que olhar para trás – para eventos passados – é algo não muito eficiente. Haja vista a história da mulher de Ló que virou estátua de sal ao olhar para trás para ver a destruição de Sodoma e tudo que pretendida deixar lá. Mas lembremos que, a história só petrifica quando olhamos para ela e a deixamos sobrepujar a força motriz que o presente nos oferece. Antônio Bento, ao olhar para seu passado, na verdade, passou a ver em seu presente outras possibilidades – ainda que fossem apenas possibilidades – para além daquelas que o vilarejo do Açu lhe oferecia.
Mas não só isso. Antônio Bento só completa sua personalidade depois de conhecer suas origens e o mundo que o envolve. Só depois que encontra a explicação do enigma da Pedra Bonita, que vivia a desafiá-lo, ele passa a desejar sua autonomia e alcançar a compreensão das suas origens. Não é à toa, que poderíamos dizer que Lins do Rego consegue nessa obra trabalhar tanto o espaço geográfico – com descrições que fazem o leitor se reportar para ele – quanto o espaço psicológico dos personagens. Quem ler a obra, consegue captar sentimentos e emoções dos personagens, tamanho o talento do autor em descortinar o mundo interior deles.
Enfim, há experiências muito particulares nessa vida e a leitura é uma delas. Aqui a gente faz um trabalho de reflexão e fomento, na verdade, de convite para essa experiência. Qualquer análise de uma obra literária – sob qualquer perspectiva, sempre deixará escapar algo. Mas como essa experiência é singular, isso se torna enriquecedor, justamente porque outros podem capturar coisas bastante distintas que um outro não se atentou. Por isso que a leitura de uma obra, por mais que leiamos análises ou críticas, é fundamental. Com Pedra Bonita não pode ser diferente. Então, o que está faltando para você começar a sua?
*Flávio Azeredo é educador, psicanalista e mestrando em Psicanálise e Educação USP