Durante a entrevista com a Global, Marina Colasanti diz que não é “tão vaidosa a ponto de considerar meus livros como clássicos”. Mesmo assim, é possível dizer que suas obras mudaram a literatura brasileira, principalmente pela forma como a autora brinca e explora a estrutura em seus textos.
Marina tem livros como Mais de 100 Histórias Maravilhosas, Eu Sozinha e diversas histórias infantis publicadas pela Global. Em entrevista para a editora, a autora fala sobre sua carreira e seu legado como uma das maiores escritoras brasileiras, além de explorar a estrutura presente em suas narrativas e o cenário político e social do Brasil.
GLOBAL: Seus livros são clássicos da literatura brasileira e ditaram muito do que é feito hoje. E você sempre gostou muito de explorar estruturas diferentes. Existe algum arrependimento? Ou algum momento que você pensou ‘bom, estou no caminho certo?’
MARINA COLASANTI: Não sou tão vaidosa a ponto de considerar meus livros como clássicos. Mas é verdade que sempre gostei de estruturas diferentes. Não tenho nenhum arrependimento. Demoro muito a considerar um livro como pronto. Depois, não me arrependi de nenhum deles. “Estou no caminho certo” penso enquanto estou escrevendo porque cada livro tem seus próprios caminhos, não quando dou o livro por encerrado.
GLOBAL: Você sempre usou e procurar explorar novos caminhos para sua escrita, sempre usando o desafio como uma motivação. Qual foi a parte que você considerou mais “desafiadora?”
MARINA COLASANTI: Chegar a uma linguagem que fosse minha.
GLOBAL: Falando um pouco da estrutura ainda: Eu, Sozinha, por exemplo, é um livro que fala, como o próprio nome aponta, sobre solidão. E hoje nós estamos vivendo no tempo mais solitário possível, de diversas formas. Acho que é justo dizer que o sentimento de solidão se multiplica, cresce e assusta. O que você escreveu naquelas páginas, ressoa demais com a nossa rotina hoje. Você concorda com isso?
MARINA COLASANTI: Ressoa com todos os tempos, não apenas com o tempo de pandemia. O ser humano nasce e morre sozinho. E sozinho toma a maior parte de suas decisões. A solidão é um sentimento comum a todos. Entretanto, na modernidade as mega cidades expandiram a solidão. Há muito mais gente se sentindo sozinho nas mega, do que havia nos povoados ou em pequenas cidades.
GLOBAL: Foi um livro estruturalmente difícil de escrever?
MARINA COLASANTI: Foi mal entendido, considerado como um livro de crônicas. Eu montei o livro obedecendo a um princípio de alternância: os capítulos ímpares seriam autobiográficos avançando cronologicamente, enquanto os pares seriam flashes de solidão do presente. Mas é provável que não tenha deixado minha intenção suficientemente clara.
GLOBAL: Algumas de suas narrativas sempre tiveram muito forte o elemento fantástico. Como você vê este cenário específico da literatura brasileira hoje? E enquanto estamos no assunto, da literatura infanto-juvenil?
MARINA COLASANTI: A literatura destinada ao público adulto está apostando mais na realidade. Na literatura infanto-juvenil os animais sempre falaram com os humanos, a metamorfose é uma constante, e tudo isso pertence àquilo que consideramos fantástico. Talvez os autores considerem que os pequenos e os jovens estão mais próximos do imaginário. Eu uso o fantástico como metáfora de sentimentos e inquietações que povoam a realidade.
GLOBAL: Da literatura infantil até a adulta, seus livros tem um olhar sensível, que acrescenta muita profundidade para qualquer história. Esses elementos surgiram da mistura de memória e imersão das condições humanas, ou de uma junção de outros elementos? Como você descreveria o seu processo de criação das narrativas?
MARINA COLASANTI: Todos os elementos contam quando se quer narrar. Memória e vivência são indispensáveis para contar uma história. Sempre prestei uma atenção danada ao que me cerca, e o que vejo passa a fazer parte de mim. Isso, desde a infância, o que significa que na minha idade tenho um repertório bem vasto! Meu processo de criação é um para contos, minicontos, poesia, contos infantis, e é outro quando escrevo contos maravilhosos, mais conhecidos como contos de fadas. No primeiro sou crítica, sou política, faço muita pesquisa. No segundo trabalho só com a emoção, me entrego à história como se descesse um rio em um barco. E obedeço ao que a história me sussurra, sem questioná-la.
GLOBAL: Uma vez vi uma entrevista aonde você chamou seu processo de ilustração de “esquizofrênico”. Ainda é assim para você?
MARINA COLASANTI: Chamei de esquizofrênico, porque não penso escrita e ilustração ao mesmo tempo – como faz a quase totalidade dos autores-ilustradores – e não as enfrento do mesmo modo. Quando escrevo preciso ter visão circular. E escolher só os elementos que, como vigas, sustentarão a história. Quando ilustro não preciso da visão circular, preciso de foco em equilíbrio, foco em luz e sombra – que conferem drama –, e cuidado para não repetir na ilustração o que já está no texto.
GLOBAL: Como uma pessoa especialista em conto de fadas, você acha que o mundo hoje, na situação caótica que está, precisa mais do que nunca dessas narrativas?
MARINA COLASANTI: O mundo sempre precisou dessas narrativas e de seu conteúdo simbólico. Não fosse assim, não teriam atravessado tantos séculos e chegado até nós.
GLOBAL: Existe um grande problema nas escolas hoje, sendo que alguns pais discutem e rebatem qualquer assunto mais complexo que os professores tentam abordar em aula como uma “doutrinação”. E a literatura, de certa forma, está no centro destas discussões. Como autora de literatura infanto-juvenil, como você vê essas discussões?
MARINA COLASANTI: Existe uma enorme diferença entre doutrinação e formação. A primeira é, em sua essência, manipuladora. Como a palavra diz, quer incutir uma doutrina, e só aquela. A formação busca o contrário, abrir a mente para a pluralidade. Mas nem frequento escolas, nem penso na reação dos pais quando estou escrevendo para crianças. Falo para elas e para mais ninguém.
GLOBAL: Uma vez vi que você se referiu a si mesma como uma “feminista histórica”. Você pode, por favor, elaborar um pouco sobre esse conceito e como ele se aplica no contexto da sua vida?
MARINA COLASANTI: Sou feminista histórica porque durante quatro anos fiz parte do primeiro Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, criado por Ruth Escobar, e durante 20 anos batalhei por estes direitos como editora de Comportamento da revista Nova, e porque publiquei quatro livros sobre as mulheres no trabalho, no amor, no estudo, e seus direitos jurídicos e sociais.