Publicado pela primeira vez em 1969, a edição de Estas Estórias tem uma introdução um pouco diferente: uma espécie de carta da filha do autor, Vilma Guimarães Rosa. No texto, ela coloca em poucas palavras a saudades que sente do pai e como foi encontrar manuscritos seus depois da sua morte. Entre esses achados, estava Estas Estórias.
Este é um jeito interessante de começar um livro porque evoca o sentimento de nostalgia, e talvez até um pouco de misticidade. A pessoa que passou a caneta por aquelas páginas já não existe mais, mesmo que aquele material em si seja inédito. Pelo olhar da sua filha, talvez uma das pessoas mais conhecia João Guimarães Rosa, o começo do livro faz um paralelo entre sua vida pessoal e o que ele escrevia. A própria Vilma diz: “A cadeira de meu pai. Sua mesa. Sua máquina de escrever. A janela onde quedávamos a olhar nossa própria conversa – pois ele tinha o dom de projetar diante nós todas as coisas que dizia (…) os quadros antiquados, no retrato das fronteiras do Brasil. Contraste.”
Este livro é composto por um total de 8 contos, sendo que estão divididos em duas partes distintas: na primeira, são os contos que o autor ainda deu à sua demão. No segundo, estão aqueles que foram publicados sem esse fator. Assim como Melhores Contos, quem organizou esta coletânea foi Walnice Nogueira Galvão, que é especialista nas obras de Guimarães Rosa e uma grande entusiasta em decifrar todas as suas metáforas e alusões. O que vem a ser muito pertinente nesta obra em específico, já que essa é, até agora, uma das mais complicadas do autor – ao mesmo tempo que é cheia de significado e profundidade.
A capa do livro tem uma onça dentro da água. As únicas coisas que se destacam nessa mistura de elementos são os dois grandes olhos amarelos e a pelagem rajada. Com o passar dos contos, fica claro porque esta era a escolha mais óbvia para ilustrar a obra, que constantemente faz questão de traçar uma narrativa que explora os limites entre a humanidade e a animalidade.
Isso fica completamente claro no conto “Meu Tio o Iauaretê”, que acompanha um indígena mestiço. Constantemente marginalizado por todos, ele acaba preferindo a companhia das onças de forma definitiva. Os animais sempre fizeram parte da narrativa do autor, que usou os bichinhos para explorar o companheirismo e a relação que os humanos criam com os animais. Aqui, no entanto, essa ligação é mais profunda. O protagonista não apenas tinha as onças como companheiras, mas também se considerava uma delas, escolhendo as mesmas como iguais. Ele se torna, consequentemente, mais animal do que humano, achando pertencimento entre eles.
A mata e as ambientações presentes nos seus livros aqui entram com potencialização máxima, assim como seu projeto linguístico único e a narrativa que brinca com os conceitos de tempo e espaço. Com personagens mais intensos, no entanto, o livro ganha uma profundidade que pode ser imersiva, como suas outras obras, mas ao mesmo tempo difícil de processar. Estas Estórias é, com certeza, um livro para ler com calma, sempre tentando decifrar o verdadeiro significado por tais das metáforas animalescas de Guimarães Rosa.
Estas Estórias vive no imaginário de todos os fãs de João Guimarães Rosa não apenas porque tem histórias impactantes, que exploram esse linear entre a humanidade e animalidade, mas também porque foi um livro concebido (isto é, publicado) após o falecimento do autor. Apesar de não estar mais aqui, sua linguagem e narrativa fluída ainda se faz mais presente do que nunca, algo que faz com que a obra seja uma das mais importantes e impactantes da sua carreira, mesmo que tenha chegado tardiamente.