Efeméride é palavra que, embora em desuso, se aplica adequadamente a esta comemoração: o concomitante cinquentenário da Global Editora e do livro Civilização e Cultura, de Luís da Câmara Cascudo, hoje um editado da casa. Trata-se de algo capaz de despertar o regozijo em todo aquele com discernimento suficiente para ultrapassar o exercício de inteligências meramente artificiais. Desse modo, e por não ser cronista autorizado a falar do surgimento e expansão da editora, aqui falarei do autor e da obra mencionada, de singular importância em sua vida de escritor na província e também marco nos estudos culturais em nosso país.
Curiosa é a história do livro. Esteve desaparecido por vários anos. E, ao contrário do que se poderia pensar, seus originais não foram os únicos nessa condição na extensa atividade de escritor, pois outra meia dúzia deles esteve ou continua desaparecida. Antes que Civilização e Cultura retornasse às suas mãos, vieram à luz lamentos bem humorados de quem não costumava utilizar-se da datilografia com cópia carbonada, como se pode ler na revista Arquivos do Instituto de Antropologia da UFRN, de 1966, na qual chegou a noticiar aquele desaparecimento. E como se tivesse a intenção de comprovar sua importância até divulgou o sumário da obra, seguido de um índice dos assuntos que pretendia abordar, e de fato abordou, listando aproximadamente 500 entradas.
Por que faço tais observações? Para ajudar a entender a milagrosa importância desse episódio na produção de um autor que, residindo num dos mais pobres estados da Federação, produziu um conjunto de livros dos mais importantes para a cultura do país, tendo entre os considerados clássicos – todos aqui reeditados – História da Alimentação no Brasil, Vaqueiros e Cantadores, Dicionário do Folclore Brasileiro, Geografia dos Mitos Brasileiros.
Sem esconder o fascínio que a História sempre exerceu sobre sua condição de pesquisador (mas a História, apenas? O que mais faltaria interessar a esse ícone da cultura potiguar, que a partir de sua torre montaigneana, a olhar o distante Potengi trabalhou incansavelmente até o fim?), sem esconder tal fascínio, dizia eu, mas tendo como suporte a etnografia e ciências correlatas, Câmara Cascudo investiu com inesgotável entusiasmo na trajetória do humano, da condição de primata à de homo sapiens e, dessa, compartilhando agrupamentos, meios de sobreviver e defender-se, interesse por manifestações artísticas enriquecidas com o surgimento e tratamento dos metais, evoluiu da cultura até a amplidão das civilizações.
Trata-se de um espetáculo escrito ao qual não faltam registros de meios de sobreviver, produção linguística, anímica e lúdica, numa fantástica viagem de quem teve a curiosidade despertada para o estudo da cultura, ainda menino, acompanhando narrativas familiares, nutrindo sua inteligência com a sabedoria dos serviçais de sua casa. Sem propriamente orientar-se por parâmetros acadêmicos fechados, a exigirem método e excitação teórica, o autor vale-se do seu magnífico acervo de ensaísta e erudito (Montaigne, de quem traduziu pioneiramente “Os canibais”, no ano de 1940, em Cadernos da Hora Presente, SP, parece acompanhá-lo o tempo todo) e acaba mergulhando numa empresa aparentemente impensável, para um escritor de província, sem jamais abrir mão do compromisso de escrever bem.
Por isso, cabe observar: poucos escritores brasileiros utilizaram-se tão apropriadamente da observação que Barthes faria mais adiante sobre a importância da relação entre as palavras saber e sabor, procedimento que deveria ser condição sine qua non para a produção de obras de natureza didático-pedagógicas ou não. E com uma assumida ludicidade na linguagem, procedimento por vezes incômodo a espíritos mais conspícuos, Luís da Câmara Cascudo nos leva, em cada página de Civilização e Cultura, numa viagem global, visitando metaforicamente os arquipélagos que representam civilizações para sempre nutridas por ilhas culturais que os formam e se expandem mundo afora. Viagem de puro prazer e grandes descobertas.
Tarcísio Gurgel nasceu em Mossoró e é professor aposentado da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Ficcionista e Pesquisador da literatura do seu Estado, publicou, os livros de contos Os de Macatuba e Conto por Conto; Informação da Literatura Potiguar e Belle Époque na Esquina, de história literária e estudos culturais e Inventário do Possível e O espetáculo Passageiro, no campo da memorialística, entre outros. É também roteirista do espetáculo Chuva de Bala no País de Mossoró, sobre a resistência da cidade ao ataque de Lampião, episódio ocorrido no ano de 1927.